Era mais uma tarde tranquila na pequena Natal. O dia era 27 de Agosto de 1931. A vida seguia sem maiores novidades como de costume, a cidade não tinha nem 40 mil habitantes ainda.
Eis que um navio de guerra todo cinza surgiu “de repente” e se prostrou na barra do Rio Potengi, quase que convidando a cidade para jogar uma bolinha; e veja no que deu…
O navio era o enorme cruzador inglês chamado “H.M.S. Dauntless” que realizava a sua primeira visita ao Brasil e a capital potiguar havia sido escolhida como sua primeira parada

Cruzador é o nome dado à um navio de guerra de grande porte, parcialmente couraçado, com artilharia de calibre médio, empregado em explorações marítimas, coberturas de navios, escolta, ataques ao litoral inimigo etc.
Como você deve imaginar, a cidade parou. Segundo os tripulantes ingleses, ao longo da margem do Rio Potengi se debruçavam mais de 5 mil natalenses, observando extasiados, no final da tarde, aquele barco de 144 metros de comprimento, que entrava vagarosamente no rio, ostentando uma enorme bandeira inglesa na sua proa.

Após a chegada mítica ocorreram as recepções e apresentações oficiais de praxe, realizadas pelo Vice Cônsul inglês em Natal e o tenente coronel da PM ao comandante oficial da Marinha de Sua Majestade John Guy Potheroe Vivian. Um homem de 44 anos extremamente educado.
Para os ingleses o local que visitavam era conhecido como “Port Natal”, e eles acharam os edifícios da cidade bem construídos e bastante modernos

Mas as ruas eram “muito ruins”. De fato, nesta época, Natal tinha poucas ruas calçadas, e por estar no período chuvoso as que haviam estavam em péssimo estado de conservação.
Os marujos estrangeiros também se espantaram com a imensa quantidade de pessoas que frequentavam o porto para ver os hábitos e a rotina dos membros do “Dauntless”.
Então, em um Sábado à tarde, o navio foi aberto para visitação

E o mais estranho para os marujos foi mostrar o que havia dentro do navio apenas por meio de gesticulações, já que os curiosos não falavam inglês.
Nesta noite os ingleses colocaram sua banda para tocar no convés e uma multidão foi atraída pela música.
Os homens do “Dauntless” acharam que a população natalense mantinha um padrão de vida muito baixo

Entretanto consideraram a cidade muito calma, onde e as pessoas ficavam na rua no máximo até as dez e meia da noite e depois tudo era silêncio. Mas em compensação a cerveja era de boa qualidade, muito barata e abundante. Aí sim, hein?
Logo os tripulantes do cruzador souberam que havia poucos cidadãos ingleses na cidade, mas havia um comércio que chamou a atenção dos marujos estrangeiros: o de peles de cobra e de lagarto para a fabricação de calçados femininos.
É importante dizer que outro dado interessante desta visita foi que os marujos ingleses se queixaram de que não existiam cabarés na cidade em 1931. Não sabiam eles que se tivessem chegado dez anos depois, quando Natal receberia os militares americanos, iriam conhecer uma vida boêmia bem diferente 😉
Maaas… se não havia cabarés, havia futebol, e logo os ingleses se animaram para jogar uma pelota

E então rapidamente foi combinado no Domingo um jogo entre os membros do time do “Dauntless”, o Royal Navy Football Association (ou simplesmente “Royal Navy FA”) com os jogadores do América Futebol Clube, campeão estadual do ano anterior, e considerado a melhor equipe potiguar naquela época.
A cidade ficou eufórica com a novidade, e os jornais noticiando tudo o que ouviam falar a respeito do “match” que ocorreria naquela tarde. Não era pra menos, Natal estava prestes à acontecer o primeiro embate da história do RN entre uma equipe de futebol potiguar e um time de outro país.
O confronto seria realizado no Estádio Juvenal Lamartine

Antes do jogo haveria uma preliminar, que começaria as escaldantes 2h da tarde entre o time do Força e Luz S. C. e um clube que possuía o nome de [e não é zueira] “Morte FC”.
O time da Royal Navy usava no uniforme a combinação: camisa azul escura e calção bege. O calção chamou a atenção dos natalenses porque possuía a mesma cor utilizada pela força policial na época.
Segundo os próprios ingleses, o seu time de futebol do “Dauntless” era o melhor de toda a Marinha Inglesa, e que até aquele momento já haviam realizado 37 jogos, com 22 vitórias, 8 empates e só 7 derrotas. A equipe do cruzador havia marcado incríveis 116 gols e sofrido apenas 29 tentos dos adversários.
E agora os marujos ingleses se batiam pela 1ª vez com sul-americanos, representados pelos brasileiros do América de Natal.
O jogo foi marcado para as três e meia da tarde, com dois tempos de 45 minutos.
Jack Romaguera, diretor da Companhia Força e Luz, responsável pelos transportes urbanos na capital potiguar, mandou aumentar o número de bondes e ônibus para trazer a maior quantidade de torcedores para apoiarem, claro, a equipe do América.
Os preços dos ingressos: 3 mil réis a arquibancada. Senhoras, crianças e o pessoal da “geral” pagariam mil réis, e quem fosse de carro era cobrado o valor de 2 mil réis por pessoa. Acredita-se que no campo não havia muros, então quem não podia pagar assistia o jogo de qualquer forma.
Seria entregue ao vencedor uma taça denominada “Eric Gordon”, em honra ao Vice Cônsul inglês, o grande incentivador da realização do jogo. Apesar de todo o característico cavalheirismo inglês, a fanfarronice deles estava a toda e tinham a certeza da vitória.
O América Futebol Clube era um time ainda amador, que se reunia de forma voluntária para jogar pelo amor a camisa

A escalação do time – que não foi este da foto acima, ok? – foi: Milton (goleiro), Everardo de Barros Vasconcelos, Hemetério e Canuto (beques), Jeremias Pinheiro Junior, João Teixeira de Carvalho e Reynaldo Praça (linha média), Glicério, Neném, Baltazar e Acióli (atacantes).
Presta atenção nesses nomes acima para quando for rolar a partida logo mais abaixo. Não foi divulgada aqueles que ficaram na “grade”, como era conhecido em Natal, ou, nos dias atuais, o o banco de reservas.
O velho “estádio” Juvenal lotou. E lembra da preliminar? Pois é, a “Morte” venceu o Força e Luz por 3 a 2.
Às 3:30 da tarde entraram no campo os atletas do América e do “Dauntless”, que foram intensamente aplaudidos. Não se sabe aqui se a torcida abecedista se reuniu para torcer pelo navio inglês.
No centro do campo a moeda foi jogada e “estááá valendooo!”

Com menos de dez minutos, logo após o segundo ataque realizado pelo time potiguar, ocorre algo que ninguém esperava: gol pra o Mecão!
Os marinheiros ingleses sentem a pancada, mas não desistem. De repente Hemetério saiu lá da defesa rubra e obrigou o goleiro inglês a realizar uma defesa difícil.
Depois Jeremias Junior, mais conhecido como Pinheirão, rouba a bola de Robson, mecânico naval e armador do time inglês, passa para Neném, que toca rasteiro para Glicério, que em um bom arremate marca o segundo gol para a equipe potiguar, e a torcida vai ao delírio.
Depois disso, os ingleses foram para cima com força total. No primeiro Canuto salvou o América de levar um gol e um atacante inglês chamado Hiller chutou forte para fora.
Segundo o material descritivo do jogo, esta fase foi um dos momentos mais dinâmicos da partida. Para a surpresa geral, em um ataque inglês, Acióli marca um pênalti. Tensão na torcida enquanto o juiz autoriza o chute contra o gol de Milton.
Em uma atitude atualmente impensada, em um verdadeiro gesto de cavalheirismo e, porque não dizer, auto-confiança no time, o batedor inglês chuta a bola para longe da meta americana de propósito. Ele é ovacionado pelo gesto.
E é fim do primeiro tempo!
A segunda fase do espetáculo começou com os ingleses indo para cima do América com toda a força.
Os ingleses voltam para as imediações da grande área americana e, numa furada de Canuto, o atacante inglês de nome Lynch chuta forte e marca o primeiro gol dos marujos do “Dauntless”.
Aquele gol acorda a equipe rubra que parte a toda para o ataque. Eis que Hemetério marca o terceiro gol americano.
Conta-se que houve mudanças no ataque potiguar, que acuaram os ingleses. Porém em nenhuma página dos jornais foi encontrada alguma referência se a equipe americana possuía uma um técnico.
Mas então para a frustração de todos, em um ótimo passe para o jogador Robson os marujos marcam o segundo gol inglês.
O ataque americano parte em contra ataque, mas Acióli, dispara para o gol adversário. Quando o defensor inglês tenta interceptar, acaba provocando um gol contra. Geral delira mais uma vez.
Logo o árbitro apita o final do jogo, América 4 x 2 “Dauntless”
Conta-se ainda que na parte da tarde ocorreu no navio um tradicional “chá das cinco”, tipicamente inglês, onde se reuniram os oficiais britânicos e as autoridades potiguares. Mas sobre o jogo nada mais foi comentado nas páginas dos jornais.
Para se ter uma ideia como era simples o futebol potiguar nesta época, os jogadores americanos Milton, Praça, Pinheiro e Neném atuaram com a camisa rubro negra do Sport, um outro time da cidade de Natal, sem que isso gerasse constrangimentos.
Logo o “Dauntless” zarpou de Natal deixando esse dia épico registrado.
Gostou? Veja também: 7 esportes que você não fazia ideia que eram praticados em Natal
Fonte: TOK de História
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9 Comentários
Daniel Augusto
(18 de agosto de 2016 - 19:57)Isso é bom pra história do clube e bom pra história da cidade, tenho orgulho de ser alvirrubro potiguar.
Henrique Araujo
(18 de agosto de 2016 - 20:03)É isso aí Daniel. Desejo muitas vitórias para o América e para o povo potiguar que está precisando! Obrigado pelo comentário. Não esquece de curtir nossa página no Facebook que ajuda muito ok? http://www.facebook.com/curiozzzo
Franklin
(24 de agosto de 2016 - 21:01)Caraca, que foda! Fui imaginando tudo aqui tipo um livro. Ótimo por esse post!
Henrique Araujo
(24 de agosto de 2016 - 21:23)Franklin, quem sabe né? Hehehe, obrigado pela sua leitura e seu comentário, viu. Ah, ja curtiu nossa página no Facebook? http://www.facebook.com/curiozzzo. Um abraço!
Tudo o que você deveria saber sobre a última vez que a Seleção Brasileira esteve em Natal | Curiozzzo
(23 de setembro de 2016 - 14:25)[…] E se você gostou vai gostar também de ver: 10 coisas sobre a primeira partida internacional de futebol da história do Rio Grande do Norte […]
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(22 de dezembro de 2016 - 12:36)[…] Veja: 10 coisas sobre a primeira partida internacional de futebol da história do Rio Grande do Norte […]
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(6 de maio de 2017 - 19:26)[…] E se gostou veja também 10 coisas sobre a primeira partida internacional de futebol da história do Rio Grande do Norte […]
José Vanilson Julião
(11 de junho de 2018 - 03:05)Artigo interessante. Entretanto o primeiro jogo internacional foi contra outro o “Delhi”, outro navio, no ano anterior.
Henrique Araujo
(11 de junho de 2018 - 08:40)Olá José, você tem algum documento ou link que possa provar o que está dizendo? Aguardando. Obg.